OPCA # 6

A imaterialidade da cultura: o que se vê na perspectiva de educandos entre seu cotidiano e suas referênicias

Miguel Sgarbi Pachioni
miguelsgarbi@hotmail.com
Estudiante de posgrado de la Universidade Federal do Paraná (UFPR) – Curitiba/PR/Brasil;
Investigador y educador sobre la temática del patrimonio cultural brasileño.

O presente artigo parte de uma proposta de mediação educomunicativa para avaliar a percepção de jovens educandos sobre o significado do conceito de patrimônio cultural. Para tanto, pretende-se comparar a perspectiva deste público advindo de dois distintos colégios de Curitiba/PR que estão simbolicamente distantes tanto culturalmente quanto socialmente, tendo em vista suas distintas e respectivas realidades socioculturais contrastantes. Desta maneira, a presente proposta procura avaliar se a percepção dos educandos condizem ou não com suas próprias realidades vivenciais ao identificarem bens culturais de seus próprios bairros, considerando seu cotidiano e suas respectivas experiências como traços de suas próprias identidades. Neste contexto, torna-se necessário estabelecer categorias de classificação que possibilitem tal comparativo, correlacionando-os com o perfil social dos educandos imersos no contexto escolar e abrindo possibilidades para se questionar o modelo de educação formal existente no Brasil.

A heterogeneidade da cultura está presente nas diferentes referências que a constitui e nas variadas formas de expressão que a caracteriza enquanto um processo construtivo, dinâmico e complexo tanto das identidades individuais como das memórias coletivas. Entendendo a cultura como um processo que inclui práticas e sentidos do cotidiano que se hibridizam em uma consonância de meios, espaços e tempos diferentes ou até divergentes (Canclini, 2006), institucionalmente uma das instâncias de sua representatividade se dá pelos patrimônios culturais1.

Isto posto, o presente artigo se estrutura diante de um processo de mediações identitárias, tendo como eixo de investigação o significado do que é considerado patrimônio cultural sob a ótica dos educandos de dois colégios públicos em Curitiba/Paraná/Brasil que, embora sigam uma mesma proposta pedagógica e sejam referências da arquitetura moderna brasileira, estão simbolicamente distantes – um é tombado e renomado pela sua qualidade de ensino, enquanto o outro é pouco relevante no contexto educativo e distante do circuito histórico-cultural tradicional da cidade.

Desta forma, seria o conceito de patrimônio cultural percebido restritamente à sua monumentaneidade e desterritorialidade, ou seja, a um bem consagrado e material, imposto de forma alheia ao contexto existente no cotidiano de cada educando? Ou estes poderiam enxergá-lo inserido em meio as suas próprias vivências cotidianas? Quais seriam as principais divergências, considerando a distinta realidade de ambos colégios, e quais seriam as semelhanças, se é que se pode notá-las?

O Colégio Estadual Maria Aguiar Teixeira, localizado no bairro Capão da Imbuia, é um exemplo da arquitetura modernista da década de 1960, embora tenha sua fachada repleta de azulejos portugueses toda pichada. Não há problema comum a qualquer escola pública de periferia que lhe seja estranho ao Maria A. Teixeira, da indisciplina ao uso e acesso às drogas, do abandono escolar às dificuldades de aprendizagem, passando pela carência de recursos: em dados colhidos junto à administração da escola, estima-se que 90% dos estudantes venham de famílias com renda entre um e cinco salários mínimos. Retomando a sua origem, o colégio Maria A. Teixeira tinha como clientela os filhos dos operários da Rede Ferroviária Federal que povoavam as modestas casas de madeira do Cajuru, um dos bairros mais antigos e bem servidos de quintais na cidade. Após este período, coube ao Maria A. Teixeira absorver o grande fluxo de migrantes advindos principalmente da região nordeste do Brasil, conciliando a este cenário a intensificação do êxodo rural, acometendo o colégio a um processo de absorção dos diferentes alunos que passaram a compor o bairro, trazendo consigo novas referências e vivências socioculturais, ampliando-as e diversificando as até então existentes.

No que tange ao sistema de avaliações, entre 2005 e 2009, o Maria passou de 3,4 para 3,7 no Índice de Desenvolvimento do Ensino Básico, o Ideb, atingindo o que o Ministério da Educação considera razoável, sendo representativo da média Brasil (porém, está abaixo das médias estadual e municipal). A média no Exame Nacional do Ensino Médio, o Enem, em 2010, está acima dos 400 pontos necessários previstos pelo ProUni para concorrer a bolsas de estudo no ensino superior. Ainda assim, conforme se nota nos indicadores anexados, os anos finais do ensino fundamental estão com médias abaixo das do município. Além disso, suas taxas de aprovação são inferiores às três outras comparativas (município, estado e federação).

Por outro lado, o Colégio Estadual do Paraná (CEP) tem sua origem no Ginásio Paranaense, em meados do século XIX. A partir de 1950, ganhou sede nova e imponente, misto de estilo getulista e art nouveau, tendo chegado ao posto de segunda melhor escola pública do Brasil, posto este que consagra sua representatividade no cenário educacional de Curitiba e mesmo do Estado do Paraná. O CEP possui um centro de memória próprio que remonta as origens do colégio, cuja construção foi iniciada em 1944 e concluída seis anos depois, quando se deu sua inauguração em 1950. Na época da sua entrega ao público, o CEP era considerado não só o maior colégio da América do Sul, como também o mais moderno, em função dos recursos educacionais e administrativos de que era dotado – ocupando área de aproximadamente 43.140 metros quadrados, dispunha de 50 salas de aula com capacidade para 50 alunos cada, além de laboratórios destinados ao ensino de disciplinas específicas, salas/ambiente, salas destinadas às atividades administrativas, cinema/teatro com capacidade para 1000 pessoas, salão nobre com 400 lugares, bibliotecas, almoxarifado, além de espaços outros relacionados a atividades docentes e discentes.

Disseminou-se no CEP, há tempos, um conjunto de atividades e modos de agir e viver de um grupo, onde se formam coletividades e que se pretende que estas tenham um sentimento de pertencimento ao colégio. Além disso, como prova da qualidade de ensino ofertada, no levantamento do ranking geral do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2010, apenas 11 escolas públicas estão entre as 138 primeiras colocadas do Paraná – e o CEP figura entre aquelas com nota acima de 600 pontos na prova. Tal notoriedade fez com que na última seleção para o primeiro ano do ensino médio, o colégio recebesse 1,4 mil inscrições para 450 vagas, uma concorrência digna de vestibular. Complementando a exemplar qualidade de ensino, outro fator que interfere positivamente na aprendizagem é a oferta de aulas de reforço em diferentes matérias, assim como as viagens educativas e visitas a museus e centros culturais, sendo tais atividades facilitadas pela localização central deste colégio.

Após contextualizar ambos colégios, há de se fazer um parênteses para afirmar que a produção cultural, objeto de análise desta proposta, não se restringe a um sentido único, podendo dar lugar a uma ampla variedade de leituras, pois são as condições de existência do público que explicam a função e propósitos dos bens simbólicos – em consonância com a teoria das mediações proposta por Martín-Barbero (2001), o sentido objetivo não está em seu conteúdo em si, mas nas circunstâncias de sua apropriação concreta de acordo com condições determinadas social e historicamente.

Como as expressões culturais devem ser vistas em relação ao contexto social ao qual integram, torna-se também necessário entender os processos comunicativos que permeiam a construção dos significados e de seus referenciais, enxergando a comunicação como um processo de construção social de sentido, imerso em um ecossistema comunicativo (Martin-Barbero, 2001) que carrega em si a manifestação simbólica repleta de significados por meio do qual uma comunidade constrói sua identidade, sendo capaz de produzir, incentivar e mediar o saber (Wolton, 2004) ao mesmo tempo em que é parte integrante da problemática que envolve as disputas de poder e hegemonia.

Desta maneira, permeando a metodologia do presente trabalho, ao analisar quais elementos são considerados representativos como um bem cultural da localidade, torna-se possível vislumbrar os vínculos com a comunidade, enxergar as tramas do cotidiano e a percepção da alteridade junto ao existente contexto, pretendendo-se, desta maneira, contribuir para uma discussão e compreensão mais amplas das realidades locais e suas respectivas expressões culturais comumente não reconhecidas como integrantes de um contexto cultural simbolicamente valioso.

Em meio as descontinuidades da sociedade moderna (Bauman, 2005), caracterizada pela perda dos referencias tradicionais aos quais as sociedades se ancoravam entre os pilares dicotômicos da dominação ou subordinação, culminando na liquefação tanto dos conhecimentos quanto dos poderes hegemônicos (Giddens, 1991), para avaliar tal dimensão da cultura e de seus significados, utilizou-se a análise de conteúdo (Bardin, 1977) para categorizar as diferentes percepções do que efetivamente os educandos entendem por patrimônio cultural, buscando averiguar se, de fato, tal concepção está ou não restritamente associada à sua monumentaneidade e desterritorialidade – um bem material, antigo e não integrado ao contexto local. Para tanto, inicialmente um questionário é aplicado em uma turma de cada colégio e, após a exibição e discussão do filme Narradores de Javé2, aborda-se uma proposta educomunicativa de modificar seu roteiro para que a remota vila retratada no filme possa ser reconhecida como um Patrimônio da Humanidade.

Como a atividade no campo do patrimônio cultural é complexa e multifacetada, exigindo capacidade de ir além das próprias referências e preferências pessoais, permite-se apropriar da perspectiva gramsciana de hegemonia (Gramsci, 1981), em que as culturas populares não são um efeito passivo ou mecânico da reprodução emplacadas por grupos dominantes, pois também se constituem retomando suas tradições e experiências próprias no conflito com os que exercem justamente a hegemonia. Nessa medida, a cultura popular é entendida como diferença e divergência, sem que seja necessariamente (e somente) absorvida pelo habitus e seja meramente representada como um eco da cultura dominante (Canclini, 2006).

Por isso Lévi-Strauss (1977) fundamenta que a identidade deva ser conceituada como um atributo universal, uma descontinuidade, sendo considerada o mínimo que funda a unidade do humano e permitindo, desta forma, que haja inteligibilidade entre suas experiências sociais. Disso, evidencia-se o quanto o reconhecimento de um bem cultural estaria associado às vivências histórica-familiares e sociais de um dado bairro ou, quando distante das vivências intimistas, um bem poderia se impor ao se estabelecer por sua institucionalidade, alheia às características locais.

Portanto, como possíveis hipóteses ao problema apresentado, pelo fato da formação do conhecimento se dar pela transmissão de conteúdo aos invés de proporcionar um encontro de sujeitos interlocutores que buscam a significação dos significados (Freire, 1968) em um campo privilegiado do enfrentamento político-ideológico, espera-se que o bem cultural sugerido pelos educandos venha a condizer com uma realidade externalizada às suas vivências, justificando a distância entre o aprendizado formal e a prática vivencial, enfatizando a materialidade e a historicidade dos bens culturais, estando inerentes à construção e valorização de identidades locais e saberes próprios/típicos.

O que a pesquisa revela, entretanto, é a não confirmação da hipótese apresentada, ainda que os educandos do colégio de maior rendimento (CEP) apresentam uma visão mais técnica e distanciada de suas realidades, ao passo em que no Colégio Maria A. Teixeira as vivências cotidianas dos educandos e o sentimento de pertencimento coletivo dos patrimônios culturais são evidenciados. Assim, além de suas relações pessoais, o sentimento de uso e referenciais coletivos destes bens, muitas vezes condizentes com sua imaterialidade e contemporaneidade, evidenciam que a suposta “subordinação” das classes culturalmente menos favorecidas à dita “imposição” do que seria cultura por aqueles que detém maior oportunidade e proximidade com suas múltiplas expressões em diferentes contextos não se verifica na prática, reforçando que os referenciais partilham da hibridização no campo social e no contexto simbólico.

Tabela1 – Dados tabulados nos dois colégios a respeito da caracterização do patrimônio cultural

Outra importante diferença notada entre os educandos destes colégios diz respeito à forma do qual um patrimônio é enxergado: enquanto para os educandos do CEP o bem cultural é visto basicamente como um objeto em si, notório/institucionalizado, no Colégio Maria A. Teixeira a percepção verificada condiz com o relacionamento do conceito de patrimônio a um processo vivencial e de interações sociais, reforçando o senso de pertencimento e de uso social deste bem.

Tabela2 – Dados tabulados nos dois colégios a respeito do referencial e citação de patrimônio cultural

Portanto, enquanto os educandos do CEP se relacionam ao bem cultural por sua notoriedade histórica e cultural, conciliando a isso elementos de significância pessoal, esta mesma significância, no caso do Colégio Maria A.Teixeira está relacionada a um sentimento de representatividade coletiva deste bem, reforçando a construção plural do qual a cultura se insere na sociedade, seja esta indiferente tanto das condições sociais quanto de acesso aos bens institucionalizados existentes.

Tabela3 – Dados tabulados nos dois colégios a respeito dos motivos de preservação do patrimônio

Tais afirmações são reforçadas pela oficina educomunicativa, esta gerada coletivamente, tendo como resultado em comum a percepção de que a religião seja considerada uma importante vertente para a caracterização da Vila de Javé como um possível patrimônio da humanidade; entretanto, de ângulos distintos: enquanto para o colégio mais conceituado o sino junto à edificação da igreja seja algo relevante no contexto do filme, para os educandos do outro colégio a celebração religiosa (cortejo) dos moradores é o que a representaria enquanto um bem a ser preservado, justificando assim sua perpetuação no tempo e no espaço.

Notas

1. . Os patrimônios culturais são aqui referenciados pelo conjunto de manifestações e realizações de uma dada coletividade, advindo de distintos contextos e imerso em um constante processo de interações e (re)criações simbólicas (Fonseca, 2000).

2. Dirigido por Eliana Caffé, o roteiro de Narradores de Javé mostra que a construção de uma usina hidrelétrica pode fazer submergir o vilarejo de Javé. A única alternativa para evitar tal desfecho seria o reconhecimento de Javé como um Patrimonio da Humanidade, sendo que aparentemente não há elementos suficientes para configurar tal cenário.


Referencias

    • Bardin, Laurence
      1977. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70.
    • Bauman, Zygmunt 
      2005. Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
    • Fonseca, Maria Cecília Londres
      2000. Referências culturais: base para novas políticas de patrimônio. In: Inventário nacional de referências culturais: manual de aplicação. Brasília: IPHAN.
     
    • Freire, Paulo
      1968. Extensão ou comunicação? Rio de Janeiro: Paz e Terra
    • García Canclini, Nestor
      2006. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. 4.ed. São Paulo: Edusp.
    • Giddens, Anthony
      1991. As consequências da modernidade. São Paulo: Unesp
    • Gramsci, Antonio
      1981. Concepção dialética da história. 4.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira
    • Lévi-strauss, Claude
      1977. L’Identité. Paris: Grasset
    • Martín-Barbero, Jesus
      2001. Dos meios às mediações. 2. ed. Rio de Janeiro: UFRJ
    • Wolton, Dominique
      2004. Pensar a Comunicação. Brasília: Editora UnB.

Cómo citar este artículo

Sgarbi, M. (2014). A imaterialidade da cultura: o que se vê na perspectiva de educandos entre seu cotidiano e suas referênicias. Boletín OPCA. 06, 27-34.


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